quinta-feira, julho 02, 2009

A teologia do Capital


Por: Paulo Brabo

De que forma a nação mais alegadamente evangélica do planeta (e, portanto, oficialmente a mais fiel ao espírito do Novo Testamento) acabou se tornando de todas a mais brutalmente consumista, mercantilista e materialista (e, portanto, a menos fiel ao espírito do evangelho e do Novo Testamento)?

Segundo Max Weber, em seu A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1904), a resposta à pergunta está, paradoxalmente, na teologia da própria Reforma. Tudo no nosso competitivo mundo capitalista, de telefones celulares a Big Brother, de Intel a sequilhos Daltony – passando por Tele-Sena, orkut, Danone Activia, Mae West, Pastilhas Valda, Pasta Jóia e Amado Batista – seria o inusitado resultado de uma curiosa interpretação da Bíblia sustentada por Calvino e seus seguidores. O capitalismo é uma curiosidade teológica.

Até o século XVI a retórica cristã havia defendido, com algum sucesso, os méritos da frugalidade e do desapego ao dinheiro e aos bens materiais. O sucesso deve ser considerado parcial porque desde o quarto século a Igreja como instituição achara-se despudoradamente poderosa e cada vez mais rica, e grande parte do poder subversivo da mensagem do Novo Testamento se perdera na contradição.

O capitalismo é uma curiosidade teológica.

Por volta de 1500 a Igreja Católica chafurdava numa complexa rede de favores políticos e econômicos, tendo lançado no mercado uma diversificada linha de produtos espirituais a fim de aumentar suas receitas materiais – linha que incluía cartões de perdão pré-pago e lotes de salvação (com vista para Deus!) com o selo de garantia do Santo Padre. Mesmo diante desse cenário, a intransigente doutrina de Jesus sobre as armadilhas do amor ao dinheiro e às riquezas havia sobrevivido na cultura e na ética popular.

Com a Reforma, tudo isso ia mudar.

Lutero começou denunciando a venda de indulgências, ao mesmo tempo em que condenava os monges como universalmente ociosos e o Papa como mãe de todas as sanguessugas. Sua tese do sacerdócio universal demonstrava como bíblica a noção de que o homem pode servir legitimamente a Deus em todas as áreas da vida civil – sendo que ninguém precisa da intermediação de um padre, sacerdote, monge ou freira para estar mais perto de Deus. Como conseqüência, vociferava Lutero, Deus é eficazmente glorificado na vida familiar e no trabalho honesto do dia-a-dia.

O trabalho foi portanto oficialmente redimido pelo luteranismo – porém, segundo Weber, foi a teologia mais elaborada de Calvino que acabou definitivamente mudando os pratos da balança.

Central na crença calvinista é o conceito dos Eleitos, aquelas pessoas que Deus escolhe para herdar a vida eterna. Os Eleitos estavam predestinados, segundo critérios pelos quais somente Deus poderia responder, à salvação e ao paraíso; todos os outros estavam condenados ao inferno e nada podia mudar isso, visto que a salvação não pode ser comprada (mais prejuízo para a venda de indulgências) e Deus é imutável. Embora fosse impossível determinar ao certo se determinada pessoa era um dos Eleitos, havia evidências externas na vida e na conduta diária da pessoa – sendo que o sucesso nos empreendimentos financeiros era tido como forte sinal de uma possível inclusão entre os Eleitos. Uma pessoa preguiçosa e indiferente era com certeza um dos perdidos, mas um sujeito ativo, austero e trabalhador dava evidência de que era um dos escolhidos de Deus.


Ajudar os outros violava a vontade de Deus, já que as pessoas só podiam demonstrar que estavam entre os Eleitos pelo trabalho das suas mãos.


Calvino ensinava que todos devem trabalhar, mesmo os ricos, porque o trabalho de cada um é da vontade de Deus. Ele ao mesmo tempo defendia um modo de vida austero e condenava todo tipo de dissipação. O empreendedor era instado a não gastar um tostão em bens supérfluos ou carnalidades; ao contrário, deveria reinvestir cada centavo dos seus lucros de forma a financiar novos empreendimentos. Utilizar os lucros para ajudar outras pessoas a se transferirem a um nível superior de subsistência violava a vontade de Deus, já que as pessoas só tinham como demonstrar que estavam entre os Eleitos pelo trabalho de suas próprias mãos. A avareza era, portanto, vista como coisa virtuosa e altruísta. Por sua vez os empregados do empreendedor, eles mesmos calvinistas, viam seu trabalho como seu "chamado" – chamado que devia ser executado com diligência e alegria mesmo que a recompensa financeira e terrena fosse pequena.

Não apenas tolerar, mas diretamente encorajar a busca pessoal ao lucro ilimitado foi um afastamento radical das crenças cristãs que haviam dominado a Idade Média. Nascia o que Weber chama de "ética protestante do trabalho" – visão de mundo que glorifica a diligência, a pontualidade, a economia, a austeridade e a inelutável supremacia do ambiente de trabalho.

Na Europa essa nova ética do trabalho teve que lutar contra séculos de ranço e resistência católica. Importada com sucesso para o Novo Mundo ela geraria os Estados Unidos, com seus milagres e contradições.

Ele está no meio de nós.


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