quinta-feira, agosto 20, 2009

Legado da crise


Por: Leonardo Boff


Legado da crise: qual o melhor sonho para ser realizado?
Há caminho para um futuro seminal para a
humanidade
A crise atual está destruindo a esperança de grande parte da humanidade, especialmente dos jovens. Há um vazio de sonhos e causas que possam mobilizar as pessoas. Miguel d’Escoto, presidente da assembleia da ONU, disse que "o legado dessa crise será uma batalha de alcance global em torno de ideias, melhor dito, em torno de qual sonho será melhor para a humanidade e para a Terra".

Tudo geralmente começa de baixo, de algo que parece insignificante, mas está na direção certa e carrega as potencialidades do novo. Foram essas ideias que me vieram à mente, ao participar do 12º Encontro de Comunidades Eclesiais de Base (CEB) em Porto Velho, Rondônia, em meados de julho. Lá estavam mais de três mil pessoas, representantes de cerca de cem mil comunidades, vindas de todos os cantos do Brasil. O tema formulado foi "Do ventre da Terra, o grito que vem da Amazônia".

Participei de grupos e das plenárias. Fiquei extasiado com o nível de consciência acerca das questões ecológicas locais e globais, do aquecimento global e da tragédia que pode advir a toda a humanidade, caso não mudemos nosso modo de ser. O que mais os preocupava era o impacto dos grandes projetos previstos para a Amazônia: mais de 50 hidrelétricas, mineradoras, siderúrgicas e abertura de estradas. Indignação causava o avanço do agronegócio e da pecuária sobre a floresta e o cerrado.

Curiosamente, davam-se conta de que tais macroprojetos estão dentro da lógica do modelo de crescimento, atrasado, que se impõe de cima para baixo, sem dialogar com as populações locais - indígenas, seringueiros, ribeirinhos, quilombolas e outros. Esses resistem, fecham estradas, cercam as obras para obrigar os diretores a dialogar com eles. Mas sabem que tais projetos serão feitos sem qualquer consideração. Eles querem mostrar que se pode fazer de outro jeito e até buscar alternativas menos agressivas à natureza.

Foram analisados em detalhe os cinco gritos que irrompem da Amazônia: o dos povos originários, obrigados ao traslado e a perder as suas terras, tradições e culturas; o da terra, grilada e devastada pela ganância de lucro; o das águas, muitas delas contaminadas pelo mercúrio dos garimpos, matando peixes e tirando a subsistência dos ribeirinhos; o das florestas sendo derrubadas. Para eles, é claro: o problema não é o chão que é pobre, mas o que está em cima dele, como plantas, animais, os milhares de insetos, enfim, a biodiversidade; a missão da Amazônia não é ser terra para soja, cana ou gado, mas ficar de pé a fim de garantir o equilíbrio dos climas mundiais, assegurar a umidade para longínquas regiões atingidas pelos "rios voadores" que saem da floresta, pois cada grande árvore lança na atmosfera por dia cerca de 300 litros de água em forma de umidade. Finalmente, o grito das cidades, 40% delas sem água encanada e 80% sem esgoto.

Tiraram-se conclusões claras: as CEBs não devem ser apenas comunidades eclesiais, mas também ecológicas de base, coisa que está presente na própria sigla CEB. Importa assumir a "florestania", quer dizer, a condição de cidadãos da floresta preservada, apoiando movimentos populares e partidos políticos ligados à transformação social.

Ecoou nos quatro dias o lema do extraordinário bispo da floresta dom Moacyr Grechi: "gente simples, fazendo coisas pequenas em lugares pouco importantes, quando unidos, fazem coisas extraordinárias". A gente das CEBs está fazendo milagres. Aí há caminho e um futuro seminal para a humanidade.

Deus não planta árvores, dizia o bispo. Planta sementes. Entre elas, estão as CEBs: sementes do novo.
Fonte: O Tempo


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