Por: Leonardo BoffSer humano jamais superará os limites de sua natureza
Rose Marie Muraro é uma mulher impossível. Com extrema limitação de vista e de saúde, escreveu 35 livros e editou cerca de outros 1.600. Foi pioneira do feminismo brasileiro. Seu estudo sobre a sexualidade da mulher brasileira se transformou num clássico, seja pela metodologia, seja pelas categorias de análise.
Formada em física, sempre se preocupou com a tecnologia e sua incidência no destino humano. Agora, no avanço dos anos, e após muitas pesquisas manejando mole imensas fontes, nos entrega um livro-síntese: "Os Avanços Tecnológicos e o Futuro da Humanidade: Querendo Ser Deus?", publicação da Editora Vozes, de Petrópolis, da qual foi diretora editorial.
O subtítulo "Querendo Ser Deus?" define a perspectiva de sua análise e, ao mesmo tempo, faz ecoar uma denúncia contra o tipo de ciência e de tecnologia dominantes na história, desde os alvores da humanidade, quando há mais de 2 milhões de anos surgiu o homo faber, aquele que primeiro utilizou o instrumento para se impor à natureza, passando por vários períodos com suas respectivas revoluções, até chegar aos tempos contemporâneos da engenharia genética, da robótica, da nanotecnologia e da biologia sintética, para culminar na fusão entre homem e máquina.
O que Rose nos mostra é o calvário da Terra e a lenta e progressiva crucificação da vida e da natureza através da tecnociência, posta a serviço da vontade de poder na sua concretização mais crua e cruel no capital/dinheiro.
Mas nem sempre foi assim. Primitivamente, o saber e a técnica estavam a serviço da solidariedade e da partilha, atendendo as demandas humanas e aliviando o peso da vida. Mas, do momento em que surgiu a moeda e ela se fez a mediação exclusiva para todas as trocas e se transformou em mercadoria com preço (juros), se produz uma perversa revolução. Passa-se da cooperação para a competição, do cuidado para a agressividade. O que vige então é o ganha/perde e não o ganha/ganha.
Os senhores do dinheiro assujeitam a si as pessoas, controlam a sociedade e decidem que saber e que técnica cabe desenvolver para reforçar seu poder. Não se produz para a vida, mas para o mercado. Não se inventa para a sociedade, mas para o lucro.
O atual projeto da tecnociência acelerou enormemente a história. Em cem anos, a humanidade caminhou mais do que nos dois milhões de anos anteriores. Essa velocidade estonteou a mente e está gerando uma verdadeira mutação humana, somente comparável àquela ocorrida na evolução biológica multimilenar. Cientistas projetam introduzir nanopartículas na corrente sanguínea do cérebro para gestar uma inteligência supra-humana. Emergiria assim um híbrido de ser humano e máquina, bifurcando a humanidade entre os melhorados e os não melhorados.
É contra esse intento que se insurge, pois ele configura suprema arrogância e atualização da antiga tentação bíblica do ser como Deus.
O ser humano, por mais que queira, jamais superará os limites de sua natureza. Só uma ciência com consciência servirá à vida e garantirá o futuro da Terra. A autora propugna por moedas complementares, por um consumo compassivo e reciclável, por uma revolução radical de dentro para fora e de baixo para cima, no jogo do ganha/ganha, como forma de sair com êxito do cipoal em que nos enredamos.
A frase final de seu brilhante livro é esperançadora: "Quando desistirmos de ser deuses, poderemos ser plenamente humanos, o que ainda não sabemos o que é, mas que intuímos desde sempre".
fonte: O Tempo